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Adozinda e Zulmiro - A Magia da Adolescência
Sofia Ester
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Capítulo VII

Naquele dia, Adozinda levantou-se cedo, pronta para ir à repartição de finanças tratar da declaração de início de actividade. Montou na vassoura e seguiu rumo ao local. (...)

Atrás da bancada de atendimento, uma multidão de funcionários corria de um lado para o outro através de um emaranhado de secretárias sobrecarregadas de papéis e pesado equipamento informático. Ao fundo, longas filas de armários repletos de dossiers adornavam a parede. Respirava-se trabalho, stress.

Passemos agora ao contribuinte. O Estado tinha tido a simpática ideia de instalar várias filas de cadeiras, como numa sala de cinema, para o cidadão aguardar a sua vez. Aqui também havia direito a filme. Sim, enquanto esperava, o contribuinte poderia regalar os olhos com um placard digital suspenso do tecto, onde aparecia indicado o número da senha de atendimento em cada guichet, à semelhança dos voos num aeroporto. Só faltavam as pipocas para tudo ser perfeito.

Como os guichets eram indicados apenas pelo número, sem referência à área de que tratavam, Adozinda pensou que em qualquer um deles poderia resolver o seu assunto. Consultou o placard, escolheu o guichet menos concorrido e retirou uma senha. (...) Passada meia-hora, quando já só faltavam alguns números para chegar ao da sua senha, Adozinda levantou-se e caminhou para o guichet correspondente. Neste momento, estava a ser atendida uma senhora. O funcionário, do outro lado da bancada, examinava os papéis por cima dos óculos.

- Isto não está bem - acabou por dizer numa voz fina enquanto alisava o bigodinho. - Falta aqui o impresso nº 33, modelo A-348, módulo 15.

- E onde é que eu poderei obter esse papel? - a senhora suspirava.

- Tem de ir à repartição de finanças em Évora.

- Mas eles lá só me deram esses documentos e disseram que bastavam. Não pode passar sem esse?

- De modo nenhum, não pode ser assim! Estaríamos a contrariar a lei! Alínea 236-78BF-45! Então não havíamos de obedecer ao Governo?

- Mas garantiram-me que isso bastava - insistiu a senhora.

- Pois, pois - o funcionário fez um sorriso fino -, isso lá no Alentejo pode ser assim... Aqui não, aqui trabalha-se! As coisas têm de ser feitas com exactidão.

- Mas, não me vai agora obrigar a voltar a Évora?!

- Minha senhora, estamos perante um obstáculo inultrapassável! - e carregou num botão. O placard luminoso fez um ruído semelhante ao de um autoclismo e o número avançou.

Com uma cara cabisbaixa, a mulher afastou-se, de regresso às terras alentejanas. Seguiu-se o próximo na fila, um rapaz pelos seus vinte e cinco, vinte e seis anos, pouco treinado ainda na selva burocrática.

- Isto está mal preenchido! - comentou o homem de bigodinho após observar os papéis.

- O que é que está mal?

- Aqui - e apontou um número no documento -, não é um seis, deveria ser um dois! Tem de voltar a preencher novos impressos.

- Não posso riscar o seis e escrever um dois?

- Rasurar os documentos? Mas de modo nenhum! Porta 6, corredor D-8, Guichet 7. Próximo! - e o número no placard luminoso voltou a avançar.

É difícil, senão mesmo impossível, ir às finanças e conseguir resolver os assuntos logo à primeira! É preciso persistência!

A vítima seguinte era um homem já pelos seus quarenta e tal anos. Vinha entregar o IRS. O funcionário ajustou os óculos e começou a introduzir a informação contida nos impressos no computador. Isto demorou algum tempo. Para cada letra, o funcionário olhava primeiro para o documento, depois procurava a tecla girando o dedo em círculos por cima do teclado, seguidamente conferia se a letra pretendida estava mesmo no ecrã, por fim olhava de novo demoradamente para o documento para confirmar que aquela era de facto a letra pretendida. Acabado o ritual, carregou em enter. Em resposta, o computador deu error e apitou. O funcionário deu um salto na cadeira como se esperasse que a máquina lhe fosse bater. Depois de recuperar do susto, ficou embasbacado diante da máquina durante algum tempo, estático, o queixo caído. Finalmente, reagiu:

- Estas inovações - protestou ele -, estas modernices! Desde que remodelaram os serviços que já ninguém se entende! Os dossiers bastavam! Não era preciso meterem cá estas - e apontou desprezivelmente para o computador -, estas... coisas! Só vieram atrapalhar o serviço! Modernices! - e afastou-se para ir pedir ajuda a alguém mais bem informado.

Alguns minutos depois, voltou com uma rapariga muito jovem, decerto ainda recém- admitida nas finanças. A rapariga olhou de relance para o monitor, premiu algumas teclas e o programa seguiu o seu percurso normal.

- Engenheiro, hem?! - perguntou o funcionário enquanto examinava os papéis.

- Sim.

- Ganha muito dinheiro, não é?

- Vai-se vivendo. Trabalho de manhã à noite.

- Pois, tem setecentos contos de imposto para pagar! - e o funcionário esboçou um sorriso enquanto observava o monitor.

- O... quê?... Como?... Não pode ser! - o engenheiro empalideceu.

- Setecentos contos - repetiu um funcionário. - Muito dinheiro, hem?

- Mas,... andei eu a trabalhar... para quê?... Como é que...

O engenheiro não teve tempo de acabar a frase, pois a forças faltaram-lhe. O homem cambaleou e caiu ao chão. Algumas almas caridosas ajudaram o senhor a deslocar-se até ao posto médico mais próximo. Quanto ao funcionário, carregou no botão e gritou com a voz esganiçada:

- Próximo!

A próxima era a bruxinha.

- Então, qual é o assunto de que quer tratar?

- Eu quero começar a trabalhar!

- Então e o que é que eu tenho a ver com isso?!

- Não temos de nos inscrever aqui? Como nos clubes de futebol? Tenho um amigo meu que já é vosso adepto. Isto tem mas é umas quotas um bocado caras. Deve ser o clube mais caro aqui de Portugal.

O homenzinho mirou a jovem por cima dos óculos.

- Isso não é neste guichet. É no guichet número 9.

- Está bem.

Dito isto, a feiticeira preparava-se para se acercar directamente do guichet número 9 quando um coro de vozes vindo das cadeiras onde os contribuintes esperavam a interrompeu.

- Como é? P'rá bicha! - gritou um velha obesa.

- Estes jovens! Já não têm respeito por nada! - manifestou-se outro.

- A juventude é rasca!

- Onde é que a menina julga que vai?!

Adozinda procurou justificar-se.

- Mas eu já estive à espera uma vez! Só que me enganei no guichet!

Os contribuintes não se acalmaram.

- Nem penses!

- Passar-me à frente, não?!

Face às quase violentas reacções dos contribuintes, Adozinda achou melhor sujeitar-se. Tirou uma senha e consultou o placard. Para seu azar, o guichet número 9 era o mais concorrido. À sua frente estavam ainda quarenta e sete pessoas. Não era justo! A bruxinha já tinha estado uma vez à espera! A culpa não era dela! Olhou de novo para o placard e pronunciou algumas palavras mágicas. Para espanto de todos, os números começaram a avançar loucamente ao som de ininterruptos disparos tipo autoclismo. Quando chegou ao número da bruxinha, o curso dos números foi interrompido. (...) Dirigindo-se à funcionária, repetiu o que já tinha dito ao colega:

- Eu quero começar a trabalhar!

- Já fez a declaração de início de actividade?

- Não, é para isso que venho cá!

- Bem, então qual vai ser a sua ocupação?

- Feiticeira!

- Como?!

- Feiticeira, bruxa, está a ver?

A funcionária franziu o sobrolho.

- Essa profissão não consta das aceites pela repartição. Escolha uma que lhe pareça adequada nesta lista.

Adozinda consultou a dita lista. Primeiro que tudo, quis confirmar que, de facto, a importante e indispensável profissão de feitiçaria não estava mencionada no documento. Foi um bocado difícil comprová-lo, pois a lista não estava organizada por ordem alfabética e Adozinda teve de correr as profissões todas.

- Parece impossível! - exclamou a feiticeira. - Têm aqui tantas profissões! Professores, jornalistas, enfermeiros, agricultores, castradores de gado, mas não referem a feitiçaria!

- Bem, se está tão interessada em ir para isso, porque é que não se inscreve como, por exemplo... - e a funcionária consultou a lista, - sacerdote de outras religiões? É parecido, não?

- Parecido?! Mas acha-me com cara de padre?! - questionou a bruxinha ofendida.

- Seja como for, é a única hipótese. A feitiçaria não é reconhecida pelas finanças.

- Isso é um insulto! - Adozinda explodiu. (...)

- Nada posso fazer.

- Mas não é justo! Exterminam-nos mesmo antes de começarmos a existir!

- Já lhe disse, feitiçaria não está aqui. Ou sacerdote de outras religiões, ou nada.

- Então, nada!

A bruxinha empinou o nariz e caminhou a passos largos para fora do edifício. (...)

 
 
 

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